Três em Um

terça-feira, 17 de agosto de 2010
(Lamara Disconzi)

Como será ter um coração dividido?
Que bate numa frequência agora, outro ritmo depois.
Um amor, duas paixões, três necessidades.
O amor é o maior, mas não é grande o bastante.
As paixões oscilam, se entrelaçam, se misturam.
As necessidades são supridas, quase sempre.
As paixões são amor e ilusão.
Essas paixões são bobas, se submetem.
A ilusão engana, o amor se cansa.
O amor é puro, verdadeiro. Jamais deixa de se entregar por completo.
Amor não mente.
A ilusão é vil, mesquinha. Apropria-se da essência do amor e se vangloria.
As paixões confundem o coração, disputam seu espaço.
E o coração que se enche de ilusão acaba deixando o amor de lado.
Então pára de bater por não mais conseguir amar.

Jogados ao Chão

segunda-feira, 17 de maio de 2010
(Lamara Disconzi)



Dona Marina bate com a vassoura na parede. Moleques idiotas. Sabe que eles nunca vão ouvir, mas bate mais uma vez mesmo assim. E outra. Balança a cabeça.
Antônio já está jogado num dos sofás entorpecido da amarelinha, da verdinha, da roxinha... Enfim, todas aquelas cores que enxergava agora. Ele ouve um tuc-tuc-tuc vindo da parede, mas a música está muito alta e ele está muito chapado. Ignora.
Matias entra na festa com cautela. É sua primeira vez aqui e sabe que o grupo é muito receptivo com o seu, com qualquer tipo de gente. Mas mesmo assim, ressabiado do jeito que é, adentra de mansinho aquela horda de prazeres lícitos e ilícitos tentando encontrar um canto onde possa se sentir mais à vontade. Vaga.
Dona Marina chama a policia uma, duas, três vezes. O homem bem humorado, “maldito seja” ela pensa, explica que são apenas alguns jovens querendo se divertir. Ela mesma nunca fora jovem? Antes que ela possa explicar que no seu tempo as coisas eram bem, bem diferentes, o policial desliga o telefone. Antes de hoje. Antes de ela ter 60 anos, era colégio militar, tarefas... no máximo um baile ou casamento arranjado. Mas Dona Marina não termina seu pensamento. A festa está cada vez mais alta.
Antônio continua sentado. Passam-lhe mais um baseado. Por que não? Ele não vai dirigir. Não manco daquele jeito. Traga com vontade e com cada tragada esquece um pouco mais de como sua carreira havia acabado por um tombo idiota, num cavalo idiota, por causa do lodo idiota na chuva idiota. Agora era um manco que trabalhava num mercadinho de cidade grande e não em uma fazenda grande em uma cidade pequena. Isso já há 10 anos.
Matias continua zanzando pela festa se sentindo estranho. Aqueles não são seus amigos. Ele não tem amigos. Ouviu falar dessa festa e sua mão havia encorajado o garoto de 15 ano a comparecer. Agora estava ali. Se sua mãe soubesse. Imagina se descobrisse que o perfeitinho do filho era gay e que nesse momento estava numa festa com todos os tipos de entorpecentes conhecidos pelo homem? Resolve aceitar as bebidas que estão lhe dando. Por mais que tente não consegue se sentir à vontade. Ali ou em qualquer outro lugar. Vai para a sacada.
Dona Marina está jogada no chão, ao lado do telefone, a mão dura ainda segurando a vassoura. Não mais ouve a festa.
Antônio, também no chão, depois das amarelinhas, verdinhas e roxinhas tem a boca cheia de espuma branca. Esquece completamente que é manco.
Matias, mais uma vez, não se enturmou. E também foi parar no chão. 17 andares abaixo.

Álbum de Fotografias

quinta-feira, 6 de maio de 2010
(Lamara Disconzi)

Acordou de sobressalto. Que barulho seria aquele?
Levantou-se da cama lentamente e caminhou até a janela. Lá fora, um poste jazia no chão, faíscas espirrando dos cabos partidos, e uma chuva caía com força.
Estava completamente desperta, não iria dormir novamente tão cedo. Tentou acender o abajur ao lado da cama, mas a lâmpada permaneceu apagada.
"Ótimo", murmurou.
Desceu as escadas às cegas, tateando as paredes até a cozinha. Abriu a terceira gaveta abaixo do balcão e tirou um saco de velas e uma caixa de fósforos dali. Acendeu uma das velas e sentiu um arrepio percorrer seu corpo. Odiava tempestades.
A chama da vela tremeu, ameaçando se apagar. Um vento uivante entrava pela janela da sala, fazendo as cortinas dançarem. Largou a vela na mesa de centro e, com algum esforço, fechou a janela. Olhou em volta, tentando decidir o que fazer. Não podia ligar a televisão, uma vez que a casa estava sem energia. Deixou os olhos percorrerem o armãrio no canto da sala e, como se uma força sobrenatural a puxasse, abriu suas portas.
Ali dentro encontravam-se uma infinidade de álbuns de fotografias. Livros contendo as memórias do verão quando tinha dez anos misturavam-se com os de sua formatura. Lembranças de seus aniversário dividiam espaço com as de sua viagem para a europa. Sem pensar muito puxou um álbum azul com corações vermelhos. Abriu a capa com cautela e leu as palavras escritas na contracapa. "Para Eduarda. Amor, Carlos".
Olhou a primeira foto. Ela e um rapaz de cabelos e olhos negros olhavam para lados opostos, sombrancelhas arqueadas, com um ar de deboche. A legenda dizia "O estranho bom que dá medo". Aquilo parecia ter acontecido há séculos.
Virou algumas páginas do álbum e parou em uma foto em que ela e o rapaz dividiam a mesma batata frita, no estilo do desenho "A Dama e o Vagabundo", enquanto sorriam candidamente um para o outro. Na próxima foto encontravam-se no banco de trás de uma van, os braços dela envolvendo os ombros dele territorialmente. Ambos tinham os olhos fechados como se estivessem dormindo.
Avançou ainda mais nas páginas. Haviam se passado seis meses entre a última foto e a que olhava agora. Seu cabelo estava mais escuro e mais curto e ela sentava no colo dele, um sorriso enorme estampado no rosto enquanto olhava para a câmera. Ele estava com os braços em volta da cintura dela e com a cabeça apoiada nas costas. Logo vinha uma foto de um dia de verão, onde ambos e alguns amigos jogavam bola na piscina. Ele estava sentado à beira, ajeitando os fones de ouvido. Ela, apoiada nas pernas dele e sorrindo para a câmera.
Continuou virando as páginas e relembrando momentos bons (porque as fotos são sempre tiradas em momentos bons). Viagens, shows, festas... Um sorriso amargo se formando em seu rosto. Momentos bons que ela não iria reviver jamais.
Foi para a cozinha e serviu um copo d´água. Ficou olhando a chuva escorrer pelo vidro da janela enquanto bebia. De repente, tomada por um impulso, pegou a vela e se dirigiu ao quarto. Pegou o telefone celular e discou o tão familiar número.
Uma voz sonolenta atendeu e ela apertou o botão vermelho, terminando a chamada. Segundos depois seu telefone começou a tocar. Ele, é claro. Ignorou a ligação e desligou o celular. Ligar para ele foi uma bobagem. Ela iria apenas ignorar o ocorrido e tentar voltar a dormir.
Apagou a vela e tapou-se. Virava de um lado para outro de cinco em cinco minutos. Não adiantava, não conseguia pegar no sono.
Passados diversos minutos, ouviu uma batida na porta. Sentou-se na cama, pensando se havia sido a sua imaginação. Quem estaria à sua porta no meio da madrugada? Um ladrão não bateria na porta, bateria?
Vestiu um chambre e dirigiu-se, no escuro, até a entrada da casa. Olhou pela janelinha ao lado da porta e reconheceu a silhueta do homem parado na varanda.
Abriu a porta e deu de cara com um Carlos molhado. Fitou-o, sem saber o que dizer.
Ele também nada disse e a tomou nos braços, beijando-a ferozmente. Subiram para o quarto onde ela despiu-o de suas roupas molhadas enquanto ele continuava a beijá-la. Fizeram amor sem dizerem uma palavra.
Mais tarde, abraçados na cama, ele finalmente falou.
"Por que não me ligou antes?"
"Tinha medo."
"De quê?"
"De que você não quisesse me responder."
"Você é quem foi embora."
"Bom, estou aqui agora, não estou?"
"Pretende ir embora de novo?"
"Não no momento," falou, sorrindo para ele. Ele deu-lhe um beijo na testa.
"E agora?", disse ele depois de alguns momentos.
Ela não respondeu. Ao invés disso esticou um braço até a mesa de cabeceira e abriu a gaveta. Tirou alguma coisa que ele não conseguia ver o que era. Ela levantou o objeto sobre sua cabeças e apertou um botão. Um flash iluminou o quarto escuro.
"Agora a gente começa um novo álbum."

O Pássaro Cantor

segunda-feira, 26 de abril de 2010
(Lamara Disconzi)





Estava imersa no seu mundo em espiral, que a prendia dentro dela mesma cada vez mais. Sem chance de escape, sem visão de saída, ela seguia pelo mesmo caminho de sempre, sem ao menos perceber. Era uma alma grandiosa perdida num mundo de coisas menores.
Como um copo, sentia-se metade cheia, metade vazia, sem saber como fazer para encher-se e, ao mesmo tempo, morrendo de medo que alguém drenasse o que lhe restava.
Possuía um bem muito precioso, algo que lhe assegurava toda a felicidade do mundo, desde que estivesse à salvo: Um pássaro em uma gaiola dourada. Um pássaro cantor. Seu canto lhe acalmava, lhe trazia paz. Era a única coisa que a levava ao lugar em que realmente se sentia em casa.
O pássaro era exuberante, exótico. Possuía o bico longo e as asas largas. As penas eram pretas, roxas e azuis e pareciam pintadas, tamanha a precisão. Seu porte era o de um pavão e ele só cantava em noites enluaradas, dormindo durante os dias dentro de sua gaiola dourada.
Mas passaram-se alguns dias e ele não mais cantava. Não havia nenhuma nuvem no céu estrelado e a lua estava cheia, mas mesmo assim a ave não ousava emitir som algum. A garota já estava ficando preocupada. Precisava ouvir o canto. Fazia parta da sua felicidade.
Depois de uma semana sem as canções do pássaro, ela teve uma ideia. Deixou-o um dia sem comer e explicou que só lhe daria a refeição se cantasse. A ave contrariada e faminta fez o que lhe era pedido. Novamente feliz, a garota deu ao pássaro de comer.
Logo, essa prática se tornou corriqueira. Se o pássaro não queria cantar, ficava sem comer. Sendo assim, cantava, mas nunca da maneira que o fazia antes. A garota percebeu isso e a alegria que costumava sentir ao ouvir as canções do pássaro não era mais a mesma. Passou a ter pena dele e se odiar por tratar a ave de maneira tão maldosa. Não queria mais ouvir o pássaro cantar. Não era justo dessa forma. Ele havia sido um presente, uma dádiva, uma prova de que a vida valia a pena, de que o amor existia para ela. Ela não tinha o direito de manipular, condicionar o amor. Sentia-se envergonhada.
Com pesar, abriu o portão da grande gaiola na qual mantinha o pássaro cantor e se afastou para que ele pudesse passar. Ele estranhou, a princípio, nunca tendo saído de sua gaiola antes, mas colocou a cabeça para fora com cautela. Devagar, foi andando até que todo o seu corpo estivesse para fora da prisão dourada. Olhou para os lados e quando viu que nada mais o detinha, bateu asas e voou.
A garota chorou por sete dias e sete noites sem cessar. Sentia como se tivessem lhe drenado o copo. Não sabia o que fazer sem o canto do pássaro. Resolveu procurar por um novo pássaro, mas nenhum cantava da mesma forma. Todos pareciam desafinados aos seus ouvidos. Logo desistiu e resolveu que viveria sem música para todo o sempre.
Chorou por mais sete dias e sete noites por não saber o que havia saído errado. Porque ele havia parado de cantar? Porque ela havia pensado apenas na felicidade dela? Porque ela o havia deixado ir?
Na sétima noite, quando suas lágrimas finalmente pareciam ter secado, a garota ouviu um canto familiar vindo do pátio. Poderia ser verdade? Correu para fora e se deparou com o Pássaro Cantor, suas majestosas penas coloridas enaltecidas pela luz do luar. Ele havia voltado para ela! E estava cantando de novo, de uma forma que ela nunca havia ouvido ele cantar antes. Muito mais bonita, muito mais sincera. Mesmo livre ele havia escolhido ficar.
Ela então percebeu que a liberdade dele refletia a sua. E ao finalmente sair da espiral que a prendia, sentiu-se feliz de verdade.

Esquizofrenia Coletiva

terça-feira, 7 de julho de 2009
(Lamara Disconzi)





- Eu vi de novo...
- A pessoa de casaco vermelho.
- É...
Inspirei profundamente e tentei me recompor. O que ela estava dizendo estava fora dos padrões. Eu tratava aquela mulher por uma simples depressão pós-divórcio. Ela vinha ao meu consultório, chorava, encontrava dificuldade em continuar com a sua vida depois de 12 anos de casada.
Normalmente deitava no divã e olhava para o teto e falava sobre a falta que o marido fazia. Sobre como era difícil dormir sozinha à noite. Um caso simples.
Agora ela sentava na poltrona em frente a minha, o corpo tenso, olhos vermelhos de chorar. Um choro diferente agora, mais desesperado. Ela demonstrava sintomas de algum tipo de esquizofrenia. Jurava estar sendo seguida por uma figura estranha de chapéu preto e sobretudo vermelho.Tudo aquilo não seria tão estranho se ela não fosse apenas uma entre nove de meus pacientes afirmando ter visto a tal pessoa.
Pacientes que não se conheciam. Pacientes que vinham ao meu consultório por motivos completamente diferentes. Pacientes que agora pareciam compartilhar do mesmo delírio coletivo.
Resolvi continuar com a consulta e deixar minhas especulações para mais tarde.
- E o que aconteceu então?
- Nada, na verdade. Quando olhei novamente ele havia desaparecido.
- E sem contar essas “aparições”, alguma coisa fora do normal tem ocorrido?
- Não... Doutor, eu sei que eu pareço maluca vendo pessoas fantasiadas que somem depois... mas eu tenho certeza do que eu vi. Eu vi essa pessoa. Ele está me seguindo!
Ela estava chorando de novo.
Tentei acalmá-la durante o resto da sessão e ao fim lhe dei uma receita para calmantes leves. Eu não tinha certeza do que estava acontecendo com ela e, portanto, não iria medicá-la sem maiores informações.
Quando ela se foi minha cabeça estava a ponto de explodir. Estava procurando por uma aspirina quando ouvi uma leve batida na minha porta.
- Pode entrar, Roberta.
Roberta era minha secretária. Era extremamente tímida e insegura e, às vezes, me lembrava um ratinho acuado. Mas era excelente no que fazia.
- Com licença doutor, seus dois últimos pacientes do dia ligaram e desmarcaram suas consultas.
- Ah, certo. Acho que vamos para casa mais cedo hoje, Roberta. Está liberada.
- Obrigada. Até amanhã, Doutor.
- Até.
Normalmente eu não ficaria feliz com a notícia de dois pacientes desmarcando seus horários tão em cima da hora. Mas eu já havia ouvido demais sobre o “ser do casaco vermelho” por um só dia, e ainda não sabia o que fazer em relação a isso.
Eu começava a pensar se a tal figura não existia de verdade. Mas então, porque apenas os meus pacientes eram capazes de vê-la? Os episódios já estavam ocorrendo havia umas três semanas e eu não ouvia ninguém fora do consultório falar nada sobre isso.
Aquilo parecia uma esquizofrenia coletiva que afetava apenas os meus pacientes. Mas até eu sabia que o que eu estava cogitando era loucura.
Fui para casa e passei a noite em claro pesquisando algum caso que fosse, de alguma forma, semelhante a esse. Não encontrei nada. No dia seguinte entrei em contato com alguns colegas especialistas na área. Mais um beco sem saída.
Conforme os dias foram passando, o número de pacientes sofrendo da “doença” foi aumentando. Eu já contara 12 pessoas que afirmavam ter encontrado o “ser do casaco vermelho”.
Também aumentava o número de cancelamentos de consultas. Nenhum voltava a ligar para remarcar. Dos12, cinco já não iam mais ao meu consultório. A Roberta ainda tentava entrar em contato com eles, mas no fim todos afirmavam que não voltariam a se consultar comigo.
Em menos de uma semana todos os 12 já haviam parado suas psicoterapias.
Dos pacientes que me restavam, nenhum havia visto ou ouvido falar de alguém usando um chapéu preto e um casaco vermelho.
Os dias passavam e eu tentava esquecer o curto e estranho caso da “esquizofrenia coletiva”, como eu resolvi chamar o distúrbio. Mas me incomodava o fato de nada ter se resolvido e de meus pacientes terem sumido tão subitamente quanto havia aparecido a “doença”. As coisas pareciam ter voltado ao normal, mas eu estava inquieto. Parecia que logo eu teria uma resposta e que ela não seria tão boa assim.
Cerca de uma semana depois minha resposta chegou na forma do jornal de segunda-feira.
Mesmo com tudo que havia acontecido, eu não havia perdido meu hábito de chegar cedo ao consultório, antes mesmo da Roberta e ler todo o jornal. Não precisei ler muito.
A matéria era de capa.
Ali estavam meus 12 pacientes. Os 12 que sofriam da tal “esquizofrenia coletiva”. 12 corpos encontrados em um barracão abandonado à beira de uma estrada fora da cidade.
De repente ouço leves batidinhas na porta do meu consultório. Roberta.
- Pode entrar.
E ela entrou, usando um chapéu preto e um casaco vermelho.


*Imagem: Lamara Disconzi

A Morte do Dinossauro

segunda-feira, 6 de julho de 2009
(Lamara Disconzi)




Quando acordou, o Dinossauro ainda estava ali, deitado em sua cama, ao seu lado, imóvel.
Ela sabia que já estava morto, mas ainda não estava frio.
Ele ocupava mais da metade de sua cama, tão grande que era.
Acariciou-lhe a cabeça, o pescoço, as costas, até chegar à cauda. Repetiu.
Tinha plena noção que ele não sentia os afagos que estava lhe fazendo. Não importava. Ela sentia. Sabia que este dia iria chegar. Claro que sabia. Aos dez anos não era mais tão ingênua a ponto de acreditar que alguém podia viver para sempre.
Mas, de alguma maneira, ela nunca havia imaginado que o Dinossauro também pudesse morrer. Afinal, ele sempre estivera ao lado dela, desde muito antes de se conhecer por gente.
De repente lhe ocorreu um pensamento. Se o Dinossauro podia morrer, outros também podiam, não? Sua mãe, seu pai, seu irmão... Todos iriam, eventualmente, morrer.
Passou, então, a listar em sua cabeça todos aqueles que iriam morrer. Tantos e tantos que lhe eram tão queridos, um dia iriam desaparecer. Seriam corpos inertes que já não mais responderiam ao seu toque. O Dinossauro era apenas o primeiro.
Uma onda de pavor cruzou sua mente. Perderia todos, não lhe restaria nem um.
Olhou para o Dinossauro novamente.
Ele lhe parecia o mesmo de sempre, mas estava morto.
Nada que fizesse ou que dissesse o traria de volta.
E assim seria com todos.
Um dia estaria sozinha, sem ninguém.
Por um momento, odiou o Dinossauro. Como ousava ser o primeiro a lhe abandonar? Depois de tudo que eles haviam passado juntos... A maneira como ela sempre cuidara dele, brincara com ele. Como ele podia fazer isso com ela?
Mas logo o ódio por ele passou. Sabia que não era sua culpa.
O abraçou forte enquanto murmurava “Desculpa, desculpa, desculpa...”.
Sem perceber, começou a chorar.
Primeiro vieram apenas aquelas primeiras lágrimas, que vêm tão de mansinho que só notamos que estão caindo quando levamos a mão à face e a sentimos molhada.
Tão de repente quanto veio o primeiro choro, veio o segundo. Agora chorava de verdade. A água salgada escorrendo forte, os soluços tão grandes que mal conseguia respirar.
Nesse momento, sua mãe entrou no quarto.
- Querida! O que houve?
E então viu a filha agarrada ao Dinossauro.
- Mari, vem, sai daí... Ele morreu.
E Mariana sentia vontade de gritar “Eu sei, eu sei que ele morreu, mas POR QUÊ?”, porém nada saia de sua boca além do choro descontrolado.
- Amor, AMOR, vem aqui!
Em poucos segundos seu pai também estava ao lado da sua cama.
- Querido, tira ele daí... Não é bom pra ela.
E seu pai tratou de tirar o Dinossauro dali. Não era uma tarefa fácil, sendo o Dinossauro tão pesado e o fato de Mariana ainda estar agarrada a ele.
Finalmente ele conseguiu, deixando Mariana sozinha naquela cama que agora parecia enorme.
A mãe logo sentou-se ao lado da menina e passou a lhe alisar os cabelos, um olhar preocupado em sua face.
O marido, percebendo, lhe disse:
- Tudo bem, querida, tá tudo bem. Semana que vem compramos um cachorrinho novo para a Mari. Só espero que dessa vez ela escolha um nome melhor que “Dinossauro”.

Puteiro em Vegas

quarta-feira, 1 de julho de 2009


(Lamara Disconzi)


Esta é a história de como eu, uma reles prostituta, fiquei rica.
Tudo começa com um homem franzino, um velho, cercado de pessoas que o observavam fascinadas. Considere que esse homem está prestes a ganhar um milhão de dólares e tudo que ele precisa fazer é escolher o número certo. Se ele o fizer, a pilha de fichas, acumuladas entre diversas jogadas perdidas e ganhas, dobrará de tamanho, o que por certo levará aquela espelunca de quinta categoria à falência.
Imagine um homem que jamais, em toda sua patética existência, cogitou obter tal quantia. Pense que, agora, essa ideia lhe parece tão próxima que ele pode sentir o cheiro.
Não que o dele seja um daqueles lances de sorte de principiante. Morando em Nevada, onde cassinos e capelas 24 horas são as principais atrações, a jogatina já havia se tornado um hábito quase diário.
Imagine que esse idiota recebe uma miséria de aposentadoria e que ele se dedica a tentar aumentar essa quantia o tanto quanto pode para comprar qualquer tipo de droga que o tire da sua triste realidade.
Estes são seus vícios. Esta é sua vida.
Mas pense que, justo nesse dia a sorte desse bastardo resolve mudar. Imagine que ele virou a noite jogando na mesma mesa, saindo apenas para ir ao banheiro, onde certamente havia cheirado algumas carreirinhas brancas para se manter ligado.
Agora ele sua, feito o porco que é, com a expectativa de quebrar a banca. Imagine seus olhos vidrados pelo efeito da droga fitando o feltro verde, enquanto tenta decidir o pequeno quadrado onde depositará todas as suas fichas.
Considere que ele, por fim, escolhe um número aleatório e cruza os dedos magros, observando a bolinha branca girar, girar e girar na direção contrária da roleta e cair, precisamente, no número três. O seu número da sorte.
Ele permanece imóvel por diversos segundo antes de berrar aos quatro cantos que está rico. Imagine que seus mais novos amigos o ovacionam na esperança de ganhar alguma esmola.
Ainda incrédulo, recolhe as moedas de plástico e as leva até o caixa, onde as troca por dois grandes sacos de papel pardo lotados de cédulas verde-musgo.
Imagine que este imbecil sai do cassino, sendo surpreendido pelo sol escaldante do verão seco do deserto, e caminha até seu Pontiac azul.
Considere, então, que ele está sentado no banco do motorista, os dois sacos cuidadosamente posicionados ao seu lado, respirando fundo diversas vezes enquanto tenta fazer a cabeça parar de girar. Pense que ele já sabe exatamente a primeira coisa que precisa fazer agora que está rico.
Este homem, esqueci dizer, possui ainda mais um vício: mulheres. Putas pagas, para ser mais exata. Não foi por isso que sua mulher o havia abandonado há muito, mas certamente ajudou; não foi por isso que ele acabou por levar a única filha para morar num trailer imundo porque não podia pagar o aluguel, mas é possível que tenha feito parte; não foi por isso que essa mesma filha fugiu de casa muito antes de atingir a maioridade, mas não acho que tenha sido mera coincidência.
Mas agora ele pensa que faz tempo que ele não sente a pele nua e úmida de uma mulher em contato com seu corpo flácido.
Aquele tarado carente.
Então lembre que agora ele tem muito dinheiro e não precisa se contentar com pulgueiros e prostitutas velhas e esgaçadas. Ele pode ter acesso a putas de luxo, siliconadas e bronzeadas, daquelas que usam perucas para imitar um cabelo perfeito. Daquelas que parecem atrizes de cinema. E é só nisso que ele consegue pensar.
Imagine que esse homem escolhe justamente o puteiro no qual eu trabalho. E eu dou o azar de ter esse idiota mandado para o meu quarto. E agora pense que antes disso ele estava no salão de baixo bebendo whisky e cheirando pó, enquanto babava em outras putas que dançavam no seu colo por gorjetas. Imagine que está tão bêbado que não dá ouvidos aos meus berros insistindo, implorando, para que ele pare.
“Por favor, não!”, digo.
Imagine que suas mãos ásperas agarram todas as partes do meu corpo, enquanto eu quase vomito.
“Por favor, pare!”, grito.
Imagine que durante esse frenesi seus braços magros estão mais fortes que nunca e ele me aperta cada vez mais, enquanto tento, em vão, empurrá-lo para longe de mim.
“Por favor, saia!”, suplico.
Imagine que ele só pára quando chega ao fim dentro de mim.
Apenas nesse momento ele levanta o olhar para minha face. Considere que ele me reconhece; que ele começa a chorar e balbuciar coisas sem nexo; que ele se lamenta vergonhosamente sobre a merda que acaba de fazer.
Imagine que ele me pede desculpas, enquanto o olho com nojo através das lágrimas; que ele me entrega as chaves de um Pontiac azul; que ele sai correndo gritando loucuras.
Pense que ele chegue a seu trailer e passa a procurar freneticamente por algo. Considere que esse algo, um revólver, é frio e pesado em suas mãos trêmulas. Imagine que ele puxa o gatinho e que a bala sai precisamente no apertão número três para dentro de sua boca.
Aquele sortudo filho de uma puta.
E é assim que ele morre, deixando um milhão de dólares para mim, a filha que ele acaba de estuprar.
 

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